O Sr. Monteiro Lobato reuniu em volume, acolchetando-lhes alguns commentarios deliciosos e emparedando-os entre um prólogo e um epilogo refulgentes de graça, os depoimentos que a propósito do Sacy Pererê obteve num inquérito aberto há tempos, na edição nocturna do Estado de São Paulo. Os leitores da Revista do Brasil dispensam, naturalmente, que lhes digamos quem é, como escriptor, o Sr. Monteiro Lobato: raro será o numero desta Revista em que sua fantasia, ora álacre, ora trágica, e sua observação, sempre aguda e quasi sempre risonha, não encantem e divirtam os leitores.
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Além do livro, Lobato promoveu um concurso de pintura sobre o Saci, que contou com a participação de vários artistas, entre eles, Anita Malfati
18. O próprio Lobato escreveu um texto sobre a exposição de representações do Saci: "productos de um concurso conseqüente a um inquerito que está na memória de todos, estiveram expostos ao publico varios quadros e esculpturas onde, pela primeira vez na terra natal do Sacy, foi o Sacy guindado ás regiões da arte."
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Lobato, com o passar do tempo, estava cada vez alinhado ao programa da Revista de formar uma consciência nacionalista. Contudo, mesmo o periódico, que nascera "para trazer a tona coisas do passado e promover análise do presente, desviava-se, instintivamente, dos rumos iniciais", em sua opinião. Segundo Cavalheiro, Lobato reclamara que só ele e Medeiros e Albuquerque, da Academia Brasileira de Letras, ocupavam-se de assuntos nacionais: "Tudo mais é coisa forasteira. Anda a nossa gente tão viciada em só dar atenção às coisas exóticas, que mesmo uma ´Revista do Brasil´ vira logo de Paris ou da China. Nascida para espelho de coisas desta terra vai refletindo só coisa de fora."
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Por essa razão, quando convidado para ser diretor da revista, almejou ainda mais, a compra do mensário, como confidenciou, em carta, ao amigo Rangel: "Lá pela Revista do Brasil tramam coisas e esperam a deliberação da assembleia dos acionistas. Querem que eu substitua o Plínio na direção; mas minha ideia é substituir-me á assembleia, comprando aquilo. Revista sem comando único não vai. Mas a coisa é segredo."
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Entretanto, o Lobato que comprou a Revista do Brasil em maio de 1918 já não parece o mesmo dos primeiros contos e artigos. O caboclo, que até então era alvo privilegiado de suas críticas, passou progressivamente à condição de vítima. O problema deixou de estar na natureza homem do campo, mas sim nas suas condições de vida. A temática passou a ser a do saneamento e da higiene, algo que já podemos perceber nas últimas participações de Lobato na Revista ainda como colaborador.
No artigo "O saneamento do Brasil", da seção "Resenha do Mês", que foi publicado primeiramente no jornal O Estado de São Paulo, Lobato denunciou o amadorismo da medicina no sertão do país e criticou a prática do curandeirismo. Por essa razão, o "treponema" riria das "micagens e rezas".
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Entre as mazelas dos sertanejos, Lobato diagnosticou também a mortalidade infantil e o acoolismo, "degenerência physiologica determinada pela cachaça". Ele apontou que, em todos os países do mundo, "as populações ruraes constituem o cerne das nacionalidades", sendo responsáveis pela "infiltração permanente de sangue e carne de boa tempera". Os camponeses contrabalanceariam o "desmedramento urbano": "os vícios, o artificialismo, o afastamento da vida natural, o ar impuro, a moradia anti-hygiencia..." Contudo, no Brasil, em sua opinião, dar-se-ia o contrário porque o "elemento rural é peior que o urbano". Dessa maneira, encerrou, concordando com o diagnóstico de Belisário Penna que apontava o Brasil como um país de doentes. Por isso, clamou pelo saneamento do país, referindo-se aos estudos de Carlos Chagas, Arthur Neiva, "e mais intemeratos discípulos de Oswaldo Cruz"
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Essa mudança de postura de Lobato em relação às populações sertanejas - que deixaram de ser culpadas pelo atraso brasileiro e passaram a ser vítimas - podemos perceber também em outro texto, "As novas possibilidade das zonas cálidas", do número 29 da revista, o último antes de assumir a direção do periódico. Lobato argumentou, citando exemplos, que foi nas zonas tropicais que se desenvolveram as espécies de animais e vegetais "mais altas", onde "a vida ascende ao esplendor máximo". Entretanto, essa regra falharia com relação ao homem. Nesse sentido, ele procurou entender o porquê dessa "contradição".
Para ele, o homem, ao civilizar-se, teve um enfraquecimento biológico, o que o impediria de prosperar em regiões quentes, repletas de parasitas: "No ser fraco, porém, dessorado pela civilização, a baixa animalidade encontra todas as portas abertas, nenhuma reacção efficaz, e fazem dele hospedaria. D´ahi o estado de doença." Contudo, Lobato acreditava ser possível mudar o estado das coisas com a higiene ("defeza artificial que o civilizado creou em substituição da defeza natural que perdeu"). Nesse sentido, embora ainda tomado por teorias raciais, Lobato apresentou uma postura mais otimista em relação ao país e sua população. O problema da nacionalidade, enfim, teria uma solução:
Desfeitos todos os véus de ufania, livres para sempre da mentira dithyrambica, o caminho está desimpeçado para a cruzada salvadora. Sanear o país deve ser a nossa obsessão de todos os momentos. É a grande formula do patriotismo que se não contenta com o jogo malabar do palavriado sonoro.
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Assim, com seu programa centrado nas grandes "questões nacionais", a Revista do Brasil foi importante na trajetória de Lobato enquanto escritor e empresário da cultura. São predominantes nesse primeiro momento seus textos ficcionais e de crítica de arte, excetuando-se os últimos, cujos temas centrais eram a higiene e o saneamento Foi atuando nesse periódico que percebemos uma consolidação das ideias de defesa do "nacional", mas não podemos deixar de destacar que suas posições sobre diversos assuntos não foram, de forma alguma, constantes. Mesmo, em certos momentos, rejeitando o "modelo europeu" e denunciando os estrangeirismos nas artes, foi Lobato o responsável pela tradução e divulgação de muitos clássicos da literatura ocidental quando passou a atuar na Companhia Editora Nacional. O célebre personagem Jeca Tatu, por exemplo, num primeiro momento dominado pela preguiça e impenetrável pelo progresso, foi recuperado e alçado à categoria de bandeirante, uma vez que foram Jecas "que devassaram os sertões com as bandeiras" e responsáveis "pelo pouco de riquezas que ainda temos"
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1 Ver LUCA, Tania Regina de. A revista do Brasil: um diagnóstico para a (n) ação. São Paulo: Unesp,1999.p. 31-32.
2 Revista do Brasil, v.1, n.1, p.1, jan.1916.
3 Revista do Brasil, v.1, n.1, p.3, jan.1916.
4 VELLOSO, Mônica Pimenta. A literatura como espelho da nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1988. p. 239.
5 De acordo com seu biógrafo, Edgar Cavalheiro, as repercussões do texto não "provocaram rumores nem comoções", somente "meia dúzia de cartas" e "um convite para pronunciar conferências na capital". CAVALHEIRO, Edgar. Monteiro Lobato: vida e obra. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955. p. 167.
6 LOBATO, Monteiro. A vingança da peroba. Revista do Brasil, v.1, n.3, p.281-295, mar.1916.
7 LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. 7ed. Obras Completas. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1956. p. 69.
8 LOBATO, Monteiro. Cidades Mortas. Revista do Brasil, v.1, n.3, p.345-347, mar.1916.
9 LOBATO, Monteiro. op.cit., p. 102.
10 LOBATO, Monteiro. Boccatorta. Revista do Brasil, v.2, n.8, p.335-348, ago.1916.
11 Idem. Ibidem, p. 348. É importante destacar que outros textos que em 1918 fariam parte de Urupês foram publicados pela 1ª vez na Revista do Brasil. Foram esses: "A colcha de retalhos" (nº 12), "Gargalhada do Collector" (que em Urupês passou a ser "O engraçado arrependido", nº 16), "Pollice Verso" (nº 18), "O mata-pau" (nº 24), "O comprador de fazendas" (nº 27) e "O estigma" (nº 28). Todos abordam a temática do sertanejo e o que envolve suas tradições e crenças.
12 LOBATO, Monteiro. Pedro Américo. Revista do Brasil, v.3, n.11. p.256-271, nov.1916.
13 LOBATO, Monteiro. Almeida Júnior. Revista do Brasil, v.4, n.13. p.35-51, jan.1917.
14 LOBATO, Monteiro. Dois pintores paulistas. Revista do Brasil, v.3, n.12. p.395-403, dez.1916.
15 LOBATO, Monteiro. O "salão" de 1917. Revista do Brasil, v.6, n.22, p. 171-190, out. 1917.
16 Idem. Ibidem, p. 190.
17 Monteiro Lobato - O sacy perere. Revista do Brasil, v.7, n.26. p.178, mar.1918.
18 No texto, Lobato comenta que Anita Malfatti "também deu sua contribuição em ismo." No mesmo ano, em 20 de dezembro de 1917, Lobato publicou uma crítica à pintura moderna de Malfatti, no jornal O Estado de São Paulo, que foi decisiva para a alcunha de "anti-modernista" de Lobato. Esse texto foi publicado dois anos depois no seu livro Idéias de Jeca Tatu, sob o título "Paranóia ou Mistificação?". A partir desse episódio, amigos de Anita, como Mário de Andrade, começaram a desqualificar Lobato como crítico de arte.
19 LOBATO, Monteiro. A exposição do Sacy. Revista do Brasil, v. 6, n.23. p.403-413,nov.1917.
20 CAVALHEIRO, Edgar. op.cit., p. 194.
21 LOBATO, Monteiro. op.cit., p. 159-160.
22 LOBATO, Monteiro. O saneamento do Brasil. Revista do Brasil, v.7, n.27. p.303-305, mar.1918.
23 Idem. Ibidem, p. 305.
24 LOBATO, Monteiro. As novas possibilidades das zonas cálidas. Revista do Brasil, v.8, n.29. p.3-8, mai.1918.
25 LOBATO, Monteiro. Mr.Slang no Brasil e Problema vital. São Paulo: Brasiliense, 1948. p.313-319.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Carmen Lucia de; CAMARGOS, Marcia Mascarenhas de Rezende; SACCHETTA, Vladimir. Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia. São Paulo: SENAC, 1997.
CAVALHEIRO, Edgar. Monteiro Lobato: vida e obra. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955.
LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1949. [1ª edição 1918].
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LUCA, Tania Regina de. A revista do Brasil: um diagnóstico para a (n) ação. São Paulo: Unesp,1999.p. 31-32.
REVISTA DO BRASIL. São Paulo. 1916-1918.
VELLOSO, Mônica Pimenta. A literatura como espelho da nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1988.