As paredes da capela quase que não têm já lugar para as figuras de cêra, troncos, cabeças, braços, pernas e mãos de todos os tamanhos e feitios que se vêem simultaneamente pendurados, ao lado de numerosos painéis, representando êste um pai salvando seu filho das garras de uma fera, aquêle um moribundo restituído à vida por haver invocado, cheio de religiosa piedade, o nome de sua divina protetora, e finalmente a simbólica epopéia de todos os martírios e de todas as dores que angustiam a existência humana.
Aí se mostram umas algemas de ferro que o tempo não conseguiu nunca enferrujar, apesar dos muitos anos que têm decorrido depois que servem de relíquia à veneração dos fiéis. Contam que um desgraçado (talvez dos que se costumam recrutar para o exército), chegando a êste lugar, extenuado de fadiga, devorado pela fome, exausto de fôrças por caminhar descalço e a pé por entre os sertões inóspitos, e de mais a mais acorrentado por êstes pesados grilhões, entrou dentro da capela e com santo fervor orou a Nossa Senhora: tanta fé tinha em sua alma que as correntes lhe caíram repentinamente dos braços e dos pés, restituindo-o por êste prodígio à sua liberdade!
Numerosas e mesmo avultadas são as esmolas que todos os anos entram nos cofres da bem-aventurada Senhora. As muitas curas que tem operado nos enfermos do mal de S. Lázaro, que tanto abundam neste ponto da província de S. Paulo e na de Minas, estendendo-se mesmo às outras que lhes são limítrofes, são o incentivo à maior parte das romarias que o povo faz a êste templo solitário e à protetora imagem da Senhora da Aparecida, que refulge no altar-mor, adornada com um precioso manto de veludo azul ricamente bordado de ouro, e parecendo sorrir compassiva a todos os infelizes que a invocam, e a quem jamais negou a consolação e a esperança.
Afortunados os rudes sertanejos que têm mais fé na intervenção divina do que nos resultados tantas vêzes mentirosos da ciência humana!
No entanto a caridade cristã impõe-nos o dever de mitigar os sofrimentos do nosso próximo; e neste intuito nos lembra um alvitre que nos parece merecer alguma intenção do govêrno, e mais ainda da administração provincial de S. Paulo.
Informaram-nos, quando passamos na capela de Nossa Senhora da Aparecida, que, desejando dar-se uma aplicação meritória ao produto das esmolas que os fiéis oferecem à Senhora, se resolvera edificar-lhe um templo de mais vastas proporções do que o que atualmente existe, e assim dar também mais importância ao lugar, que já é hoje uma bonita aldeia.
Respeitando o que há de religioso na intenção desta aldeia, não seria mais útil e até agradável à benfeitoria dos aflitos que, em vez de uma igreja, se construísse um hospital com a invocação da mesma Virgem, consagrado a recolher a grande quantidade de morféticos que infestam as estradas e os caminhos de quase todo o norte da província, oferecendo aos olhos do povo viandante o mais triste e lastimoso de todos os espetáculos?
Causa realmente dó, compunge o coração ver esses desgraçados dentro de suas choupanas de palha, cobertos de andrajos e de lepra, estenderem a mão a quem passa, pedindo-lhe um óbulo para matarem a fome! É realmente um quadro êste que não tem perdão nem desculpa em pleno século XIX!
Ainda mais: nos domingos e dias santificados, como muitas vêzes observamos, êstes infelizes concorrem aos mercados e andam por entre o povo esmolando, e em contacto com os vendedores e quitandeiras.
Os escravos fugidos vão ordinàriamente acoutar-se nos albergues dos leprosos, e aí se conservam muitas vêzes dias e meses, até regressarem de novo para casa de seus senhores, já inoculados do mal, que não tarda em propagar-se por seus companheiros, afetando até os próprios brancos.
A criação de um hospital de lázaros seria pois, a nosso ver, uma das obras mais meritórias à piedade divina. Assim se terá conseguido dois fins: prestar um culto à divindade e concorrer para aliviar de horríveis sofrimentos tão grande parte de nossos irmãos.
A pouca distância da capela existe na beira da estrada uma pedra já meio encoberta pelos espinheiros bravios, e a que chamam a pegada. Na sua face superior está perfeitamente gravada a planta de um pé humano.
Contam os moradores antigos do lugar que um filho desnaturado, tendo concebido o nefando intento de assassinar sua mãe, a esperara sôbre esta pedra, e que, no momento em que ela passava e êle ia perpetrar êste monstruoso crime, sentiu o pé agarrado ao lajedo, e tal foi o seu terror, que poucos momentos sobreviveu a esta tremenda punição dos céus!
Estas tradições são os melhores exemplos, as mais profícuas lições de moral que a religião e a piedade podem ensinar ao povo rude, porém impressionável e bom do interior do país.
A capela de Nossa Senhora da Aparecida foi fundada em 1743, sendo bispo desta diocese D. João da Cruz.